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A nossa recusa

Manufactura Independente

A nossa recusa

Manufactura Independente 1/20

Olá Mariana, olá Joana,

Obrigada pelo convite. Foi um dos emails mais fixes a pairar nas nossas caixas de correio. Queremos ler as Cartas sobre design mas sentimos alguma hesitação em aceitar escrever uma. Na última década sentimo-nos sempre confusos quanto à nossa relação com o design, e quando nos perguntam se somos designers nunca nos sentimos seguros em responder sim. Não é algo que nos incomode ou que tenhamos alguma vez procurado sistematizar, mas para vos conseguir explicar porque sentimos que não somos indicados para responder ao vosso convite, vamos tentar.

2/20

Fomos seguindo por linhas inesperadas desde que terminámos o curso de design de comunicação em 2006. Nessa altura, éramos certamente designers. Mas poucos meses depois de termos terminado a licenciatura, sentimos uma facada no coração quando a Adobe adquiriu a Macromedia e, entre outros, acabou com o FreeHand. Era o nosso editor vectorial preferido, com uma versatilidade algo única que nos permitia desenhar logos, posters e paginar publicações sem precisar de mais. Junto com a notícia do fim do nosso canivete gráfico (e da necessária migração para o Illustrator) os nossos MacBooks também se tornaram obsoletos: a Apple anunciou a mudança para processadores Intel, significando que os antigos estavam a prazo já que as novas versões de software concentrar-se-iam na nova arquitetura dos Macs. Tanto no hardware como no software, desconcertou-nos como decisões corporativas tomadas no outro lado do mundo causavam tamanho impacto no nosso percurso profissional, obrigando-nos a inteirar-nos de novas ferramentas e sem garantias de quanto tempo iria passar até ser imposta uma nova reviravolta nos nossos métodos de trabalho.

3/20

Foi aí que tomámos o primeiro passo fora do trilho convencional da carreira de designer: instalámos o GNU/Linux, o sistema operativo que Neal Stephenson (1) comparou a um tanque de guerra, por oposição às carrinhas Windows ou os desportivos de luxo Apple. A analogia é justa: o processo de adaptação é extremamente envolvido e obriga-nos a sujar as mãos em pormenores técnicos obscuros, mas recompensa-nos com um conhecimento íntimo da nossa ferramenta de trabalho que nos abre outro tipo de horizontes para além do que estávamos habituados.

A transição para um novo sistema operativo, bem como para os programas livres alternativos (Gimp, Inkscape, Scribus e outros) foi muito difícil – um pouco aliviada por sermos dois, numa espécie de pacto suicida para abandonar Windows e Mac, recordando ao outro que não dá para voltar atrás, de cada vez que surgia mais uma pedra no sapato, mais um enguiço, mais um bug, mais um obstáculo que nos impedia de alcançar a fluidez que tínhamos com o FreeHand ou Photoshop. Cerca de um ano e tal depois, a conversão estava feita.

1. No livro "In the beginning... was the command line".
4/20

Uma pessoa que viria a tornar-se nossa cúmplice nas andanças do design e ferramentas livres, ginger coons, descreveu de forma eloquente o ciclo que nos leva à supremacia Adobe (2): aprendemos a usar software proprietário no curso porque as empresas oferecem licenças gratuitas às escolas e aos alunos; as gráficas precisam de usar o mesmo software que os profissionais aprendem no curso; os anúncios de trabalho não procuram designers que dominem layout, paginação, desenhos de tipos ou edição de imagem, procuram designers com experiência em Adobe Suite. É difícil sair do ciclo, é difícil quebrá-lo e imaginar um percurso que possa desviar-se deste caminho árido.

2. "Ownership and standards: why designers are slow to adopt open source."
5/20

De repente, o designer parece reduzido a um operador de ferramentas. Mas o discurso sobre design muito raramente aceita essa realidade, fugindo ativamente de pormenores técnicos sobre software — por considerá-los prosaicos, talvez? É um dos detalhes que ficou evidente quando fizemos a transição para outras ferramentas — ao tomar contacto com várias formas de executar a mesma tarefa, consciencializamo-nos do processo e afastamo-nos das restrições de uma ferramenta única.

Ao mesmo tempo, consideramos experimentar e integrar ferramentas de outras áreas, que nos obrigam a pensar sob lógicas diferentes.

6/20

Qualquer que seja o motivo histórico que tenha causado essa aparente alergia a falar de software, sentimos que é um contraste notável quando recordamos que a relação do design com os meios de produção era outra, por exemplo na tipografia ou mesmo na pré-impressão, onde a mestria é exaltada e o domínio da técnica fonte de admiração e reverência. Com o software, quem percebe é geek ou nerd, não tem direito ao rótulo de mestre. Se aceitarmos que o design gráfico contemporâneo está irremediavelmente sustentado em software, há aqui um contrassenso que reconhecemos como fonte do nosso afastamento de um discurso de design convencional. Os mesmos designers que insistem no micro-pormenor e na nostalgia das impressões em processos manuais como os tipos de chumbo, não aplicam a mesma exigência a formatos de ficheiro, ferramentas alternativas, interfaces direcionados ou automatização de processos.

7/20

O software simplificou tanta coisa na execução técnica do nosso trabalho, tantas opções à distância de um botão. Os botões são irresistíveis. Mas vamos com cuidado, há coisas que não se fazem, há botões que estão lá mas não se devem usar. Não podemos esquecer que os programas de paginação e layout são feitos por programadores, pessoas que veem o mundo sobre outra lógica, uma que não é a do design. E isso nota-se, especialmente no software dos anos 90, em que as escolhas por default eram frequentemente pirosas, e era preciso alguma vontade e determinação para conseguir extrair dos programas resultados minimamente consequentes.

8/20

Alinhar o texto ou justificá-lo passou a ser uma escolha simples, uns botões omnipresentes nos programas de layout. Justificar um texto já não era uma tarefa de paciência e dedicação, à volta de blocos de chumbo. E se para impressão qualquer alinhamento servia, desde que houvesse um motivo a orientar a escolha, alinhar texto numa página web significava escolher entre esquerda ou direita. Até há muito pouco tempo, justificar um texto numa página de HTML era voltar atrás no tempo, confrontarmo-nos com tecnologia que lidava com layout de forma rudimentar. Contornar os rios, no texto justificado, voltava a significar paciência e dedicação. Uma que nos mostrava como os programas de layout são uma espécie de livro que junta anos de prática e conhecimento.

9/20

Sair da esfera Adobe para o universo do software livre leva-nos para outras formas de ver. É um pouco como pegar nas malas para deixar a cidade e seguir para o campo. Precisamos de adquirir novos hábitos, aproveitar o novo contexto para criar novas abordagens – e abandonar outras. Descobrimos a linha de comandos, depois o código e a programação, que nos deram outros poderes para fazer design, mas que já estão situados bem longe da zona de conforto do design convencional. Reparámos que integrar a programação na nossa prática também induz as pessoas a considerarem-nos programadores, um termo que não apreciamos devido à fácil associação com contextos profissionais secos e tecnocráticos. Ficamos numa margem estranha, ao programar passamos a ser um pouco menos designers mas também não somos bem programadores. A nossa prática de design faz-nos questionar a super otimização do código porque isso lhe tira legibilidade. Preferimos ver o código como magia, um conjunto de linguagens e encantamentos recônditos (acessíveis a quem quiser neles entrar), que nos dá o poder de transmutar e manipular a realidade. Permite-nos colocar efetivamente os computadores a fazer o que nós queremos.

10/20

A ligação mais interessante que nos lembramos de ouvir sobre a relação íntima que estabelecemos com as ferramentas veio do trabalho da Femke Snelting. A partir de uma história do Bruno Munari, que falava da mudança de forma da colher de pau com o uso (3) — ao longo do tempo, o movimento de mexer a colher fá-la mudar de forma e revelar aquela que é a forma ideal de uma colher de pau. A parte da colher que se gasta, ao rodar sobre o fundo e as paredes do tacho, é uma que já comemos, que se misturou com o que cozinhamos. De forma impercetível e subtil, as ferramentas fundem-se com o nosso trabalho.

3. "Tools shape practice."
11/20

É difícil saber que existem outros programas para além do que aprendemos, para além do que as gráficas pedem, para além do que os cargos de design especificam. Mas existem. Quando tivemos de encontrar substituto para o Freehand, obrigámo-nos a aprender Inkscape. A moldura de interface à volta da nossa página com rabiscos e designs passou a ser diferente. Para compor tínhamos uma moldura, para paginar outra, para editar imagens outra. Até podíamos usar instruções de texto, na linha de comando, para editar os trabalhos. Fazer design sem um interface gráfico parece menos design.

12/20

As molduras dos programas que usamos — compostas de menus, caixas de ferramentas, scroll e barras de estado — podem ser mudadas. Se quiséssemos podíamos pô-las todas iguais, simular uma suite. Os programas livres são descomplicados nesse aspeto, são fáceis de alterar, não querem impor-nos um design e se calhar por isso mesmo parecem menos intencionais. Deixam-nos (se assim entendermos) a tarefa de os pôr bonitos e organizados, como quem organiza a secretária ou mobila o escritório. Nós habituamo-nos a ter molduras diferentes em cada programa, tarefas diferentes aconteciam em sítios diferentes. Os atalhos de teclado, por outro lado, afinamos e ajustamos. Precisávamos de manter a coreografia de dedos constante, de acordo com o nosso critério íntimo de como queremos fazer realmente as coisas.

13/20

Muito do nosso trabalho e da nossa prática acontece no computador, na área dos interfaces web e aplicações. Desde o início que sentimos a relação de interdependência entre o design e a programação, o desiquilíbrio de poder entre o designer e o programador. Quisemos tornar-nos uma espécie de artesãos, que executam as diferentes partes de um processo, que vão dos esboços à concretização.

14/20

Entramos pela programação. Evitamos os trabalhos que sejam exclusivamente de programação. Procuramos aqueles onde podemos pensar, organizar e desenhar antes de implementar. É um poder maior este mas também é esse poder que nos coloca na fronteira entre ser ou não ser designer. É estranho ser assim no digital. Na impressão não se coloca tanto em causa um designer que domine a técnica e faça a produção, que pratique e domine técnicas como a serigrafia, a composição em tipos de chumbo, risografia, encadernação, etc. Os tipos de chumbo fazem parte da história do design impresso. O código também está lá desde o início do design de interfaces mas talvez escondido demais para o vermos como uma parte do que fazemos (4).

4. Em "Own the means of production", Gijs de Heij e Eric Schrijver escrevem sobre a importância de tomar controlo sobre os nossos meios de produção.
15/20

Outra das evidências que se tornou clara durante a nossa carreira foi que o envolvimento em diferentes áreas torna clara uma inevitável dimensão política do design: a articulação entre diferentes áreas torna mais fácil de ver a presença de relações de poder tanto na atividade profissional como na praxis artística. Especialmente quando tanto se presume um caráter apolítico na área: parafraseando o Žižek quando descreve a ideologia, a afirmação de algo como não político contém em si uma postura e uma direção política. A proclamação de neutralidade torna-se uma forma de evitar questões e de não reconhecer conflitos e incongruências internas, e boa parte do discurso teórico de design vive na fantasia de que a dimensão política seria um acrescento e não uma característica intrínseca do design (tal como de qualquer outra área de estudo ou atividade).

16/20

No percurso deparámo-nos com o ensaio Tyranny of Structurelessness, de Jo Freeman, que demonstra como todas as estruturas têm hierarquias definidas; aquelas que dizem não ter, porque se dizem horizontais, neutras, comunitárias, continuam a ter uma hierarquia de poder, mas implícita em vez de explícita. Uma hierarquia de poder que se torna muito mais difícil de questionar e analisar pelo facto de não ter a sua existência reconhecida. Sentimos a presença de hierarquias fortes no design — os grandes estúdios que dão palestras aos designers recém-licenciados, ou que os recebem para estágios; os clientes que teremos de educar; ou de forma mais ampla, a eterna possibilidade de um papel construtivo do design quando as evidências apontam para uma natural cumplicidade com (ou, se quisermos ser francos, submissão a) os mecanismos do capitalismo e neo-liberalismo. O discurso formal de design não parece estar disposto a reconhecer de forma clara essas assimetrias, reservando a análise à conversa de corredor, onde é muito menos visível.

17/20

Outro exemplo, o manifesto First Things First responsabiliza individualmente os designers pelas vias profissionais que seguem, e pela urgência de sair da lógica do capital, mas é omisso quanto ao papel das instituições nesse processo: as universidades, as associações profissionais ou mesmo os órgãos de soberania. Sentimo-nos sozinhos, como parte de uma profissão que ninguém realmente compreende ou dá o devido valor, a quem não se dá o microfone na altura de pensar uma sociedade melhor. Depois de alguns anos a ouvir a mesma cassete, ficamos enfurecidos, porque este discurso não propõe qualquer saída: depende-se sempre do outro para concretizar o devir do design—como quando se argumenta que é preciso consciencializar políticos sobre a importância do design, ou então educar o cliente, posturas que parecem apenas justificar uma posição imóvel e resignada a uma grandeza que não temos, tudo por culpa do outro.

18/20

Em última análise, o que é essa figura do design? Sentimo-nos velhotes quando nos atrevemos a sugerir que isso do design é uma construção útil para apontar frustrações e agendas. Falamos muito do design, mas raramente dos designers. Hoje, mais do que nunca, sentimos que descrever isso do design é inútil; preferimos falar de designers, da interação do que fazemos com outras áreas, das interdependências da nossa prática enquanto designers com outros campos, e resistir à condescendência de nos colocarmos numa torre corporativa com a etiqueta design que nos torna menos humanos. De rejeitar a ideia que devemos fazer só design, ficar na nossa área de conhecimento.

E em ainda mais última análise, qual é o valor do rótulo profissional estático de designer, quando é uma área que ganha tanto fazendo pontes com outras áreas de conhecimento e intervenção? Num momento histórico em que uma carreira profissional já não é uma progressão linear, e que as fronteiras entre áreas estão cada vez mais esbatidas, estamos cada vez mais céticos quanto a restringir discursos sobre ferramentas, estética, sociedade, futuro, forma e função, apenas a uma esfera limitada (e algo estéril) de um discurso especializado, seja profissional ou académico.

19/20

Por isso é que não sentimos ser bons interlocutores para a vossa procura. Já não nos ocupa a cabeça se o que estamos a fazer em cada momento é ou não design. Também já nos deixamos de preocupar com encontrar designações para uma atividade que tanto absorve de outras, confundindo irremediavelmente a sua identidade e a possibilidade de a definir. No final, esta carta é uma forma longa de dizer que não queremos muito saber desse assunto, mas com a simpatia e consideração que o vosso generoso convite merece. Esperamos que consigam encontrar melhores respostas junto de interlocutores menos alheios. Esperamos ler as Cartas sobre design e talvez voltar a encontrar sentido neste meio.

Ana & Ricardo
Porto, 6 de abril de 2022

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