A quem ainda não me conhece
Beatriz GentilÉ difícil reduzir uma vida a quatro páginas de texto, mas vou tentar.
Apesar de ser formada em pintura depressa mudei para o design, a partir do momento em que recebi uma encomenda grande da Fundação Calouste Gulbenkian (1967-68). Precisavam de alguém interessado em obras de arte, e sobretudo em pesquisa, para levar a cabo uma encomenda de nove livros dedicados a esse tema. Neste caso, foi preciso desenhar o título da obra: Documentos para a História de Arte em Portugal. A pedido do Arquiteto Raul Lino, o título foi executado manualmente, assim como os cálculos dos espaços entre as letras. Cheguei a fazer um dos índices de assuntos.
2/12Antes disso já tinha feito algumas montras para a CUF (Companhia e União Fabril). Integrada na Tipografia Casa Portuguesa, tinha feito capas de livros, assim como capas para a revista “Seara Nova” (a censura cortava a maior parte). Na Latina, agência de publicidade onde trabalhei a seguir, fiz ilustrações e alguns cartazes para diversas entidades particulares.
Nesta altura os designers eram poucos e a mobilidade fácil. Quando, muito mais tarde, em 1975-76, formámos a Associação Portuguesa de Designers, éramos só 22, contando com os vários ramos da profissão. Fui depois para a Editorial Verbo, onde me ocupei da Enciclopédia Verbo de Cultura (escolha de ilustrações e encomendas das mesmas) e de alguns livros (funções idênticas).
3/12Vários acontecimentos da minha vida particular, levaram-me a Luanda onde arranjei trabalho na revista “Notícia”, e lá teve importância para mim como elemento de formação ter trabalhado com os poetas Herberto Hélder e José Sebag.
Depois de Luanda, fui ainda para a Moura George/Briggs Ld. of London, onde me encarreguei de vários trabalhos gráficos, antes de integrar as equipas de trabalho do atelier de Daciano Costa. Foram muitos os trabalhos que fiz nestas equipas, desde todos os grafismos incluindo sinalizações, fardas e decoração de louças, até ementas e letterings com os nomes das salas para os Hotéis Altis e Casino Park Hotel (este na Ilha da Madeira), como para a TAP (Transportes Aéreos Portugueses). Ter trabalhado aí foi-me precioso para os tempos que se seguiram como professora de Design na Escola, depois Faculdade de Belas Artes do Porto.
4/12Direi sempre que para a minha formação como designer contei com dois patrões/professores em Daciano Costa e Kenneth Briggs. No atelier de Daciano da Costa, atravessou-se o 25 de Abril; além de design de várias especialidades, fui incumbida de desenhar tecidos para decoração de interiores, a pedido do Fundo de Fomento de Exportação.
5/12Novamente por motivos particulares fui depois para o Porto em 1977, onde, depois de ter dado aulas primeiro numa Escola Secundária em Penafiel e depois na Escola Soares dos Reis, concorri a um lugar de docente Design Gráfico na então Escola Superior de Belas Artes. Resolvi que a minha entrada (primeira mulher a lecionar ali) teria de fazer diferença e, de acordo com isso, foi bastante movimentada a minha atuação. Tendo alunos que queriam fazer Cinema Animado, consegui que a RTP me cedesse uma mesa de montagem que não estava em uso e desenhei mesas luminosas para que pudessem realizar o trabalho pretendido. Depois de ter sido recusada pela ESBAP uma colaboração com uma Escola de Artes na Bélgica, dois ou três anos depois fui convidada para ir para Paris (1984) ocupar-me da cor de uma longa-metragem de Cinema Animado: Robinson & Cie (ganhou o grande prémio do Festival de Annecy).
6/12Esquecia-me de que, entretanto, tinha vindo a fazer décors e figurinos para vários realizadores de cinema: Silvestre para João César Monteiro (fiz décors e figurinos e criei um processo de montar e desmontar várias peças de modo a que pudessem servir para fazer diferentes peças de mobiliário). Figurinos para Francisca de Manoel de Oliveira. A continuação do trabalho de Cristina Reis, que se encontrava na Alemanha, para Paulo Rocha no filme Ilha dos Amores.
O realismo de algumas cenas valeu-me uma graça de um tio-avô, que voltava da sua noite e me surpreendeu a envolver em véus negros a estátua do Camões. Foi dos trabalhos que me deram maior prazer, porque todos os recursos de um designer tiveram de ser empregues.
7/12Paulo Rocha dizia apenas: “os canhões têm de lembrar paz”. Resolvi encher de flores do campo as bocas dos canhões. “Queria uma enfermaria da 1ª Guerra Mundial numa das salas do Museu Militar”. Foi feito ao milímetro, com caixas de remédios desse tempo encontradas numa farmácia que ainda as tinha e partindo da observação de vários filmes da época. Foi este filme visto pelo realizador francês que determinou o convite para trabalhar em Paris.
Enquanto estava em Paris fiz também para René Laloux a cor dos desenhos de apresentação para uma série alemã de cinema de animação a que concorreu, e redesenhei uma figura publicitária para Jean Rubak. A minha estadia foi um total de dois anos e meio, em que fui fazendo tudo aquilo de que o filme necessitava, até chapéus, e os estranhos fatos desenhados por Jacques Colombat. Filmámos as “imagens reais” das quais a animação dependeria na Floresta de Fontainebleu.
8/12Aproveitei este período para frequentar o Museu do Louvre (de que me fiz associada, para visitas rápidas a peças preferidas, nos fins de tarde), bem como do Centro Georges Pompidou, onde podia assistir às conferências semanais habituais neste Centro). Aproveitei esta estadia para recolher informação junto do Instituto Italiano de Cultura sobre casas de férias para alugar em Itália, informação que me veio a ser útil para as inúmeras viagens que fizemos anualmente. Com o meu marido, fazíamos todos os anos além de estadias de um ou dois meses em Itália, uma viagem de 10 a 15 dias a Nova Iorque para idas aos museus e para trazer informação útil para os alunos e para nós (sobretudo livros).
9/12O meu tempo na (futura) Faculdade de Belas Artes foi misto: de uma excelente relação com os alunos e alguns colegas até à negação de me aceitarem para Professora Agregada (sendo mulher e de Lisboa) houve de tudo. Dei aulas 32 anos naquela Instituição. Nos últimos seis anos fui Diretora do Departamento de Design. Tive a oportunidade de escolher excelentes técnicos, que ainda estão na FBAUP, alguns tendo avançado nas carreiras, como sempre lhes pedi que fizessem.
Fiz na FBAUP mais alguns trabalhos gráficos: além de 2 cartazes, uma curiosidade levou-me a, pacientemente, recortar em Photoshop vários bocadinhos de um desenho da coleção da Faculdade, montado de forma a ser impossível descolá-lo, e revelar o desenho a traço e aguada no verso, que transparecia parcialmente do outro lado, e assim descobrir qual o assunto do desenho (uma escultura antiga). Este trabalho veio ajudar a identificar o autor do desenho.
10/12Tendo ficado decidido que o último ano do curso de Design seria um estágio ou um trabalho pessoal, como os alunos escolheram o segundo, decidi fazer um álbum com os seus trabalhos, desse ano de excecional qualidade, e tendo cada um escolhido o trabalho a apresentar, com capa de uma aluna, Catarina Mendes, foi realizado “Transições”. Consegui dinheiro do BPI para o imprimir. Resultava de várias exposições de fim do ano.

A prática das exposições de fim de ano ficou assente. Nos últimos anos tive uma grande quantidade de alunos estrangeiros, como podia falar, além do português, Francês, Italiano, Inglês e algum Alemão, dirigiam para mim a maior parte dos alunos estrangeiros de Artes Gráficas.
Hoje em dia, devido ao avanço da idade (tenho oitenta anos) já não tenho tido atividade profissional.
Lisboa, 16 de março de 2022
Beatriz Gentil