Cara…… não sei ainda o que vos chamar
Carolina Valente PintoCara………… não sei ainda o que vos chamar,
estou a trabalhar para que tenham nomes além de “pessoas”, “crianças” e “mulheres”, o que talvez nunca vá acontecer: será esta uma tarefa impossível, diria até arrogante? Quem sou eu para me encarregar de tal projecto, e porque me penso digna de uma missão que nunca saberão que alguma vez existiu? Que direito tenho, que estrelas se alinharam, que terras pisei, que tempo encontrei, para estar aqui a segurar-vos?
2/10Cem anos depois de alguém vos ter capturado numa lente para dentro de uma caixa preta, iluminadas em químicos e água, impressas em papel, colocadas algures, esquecidas e lembradas, postas em caixas e trazidas para uma cave para viver em conjunto com quilómetros de outros corpos assim traduzidos — eu pego nessa tradução, eu capturo-vos outra vez com as minhas mãos. Eu prometo que estamos a tentar tratar-vos com cuidado, que estas reencarnações existem em tempos melhores, que estamos a trabalhar para que possam ter uma história, e talvez até várias, histórias especuladas e inventadas na tentativa de inverter narrativas, de vos libertar da existência como vítima. Eu prometo que, apesar das luvas que uso e da minúcia milimétrica com que viro a fotografia, estamos a tratar-vos com humanidade, com empatia, com raiva mas também com amor. Conseguirei alguma vez fazê-lo, conseguirei cumprir estas promessas que não tornam nada atrás e que, eventualmente, vos devolverão à caixa, à cave, à escuridão? Quem sou eu, que tempo encontrei?
4/10Todos os dias tento saber mais sobre vocês, olho para todos os detalhes e tento devolver-vos a uma história: eu sou a que faz perguntas, mas que ao mesmo tempo dá as respostas. Nunca será um diálogo, porque nunca ninguém escreveu o que diziam. Escreveram sobre vocês, tiraram fotografias dos vossos filhos, das vossas irmãs — e o que mais vos fizeram, não irei pôr nesta carta. E agora estou aqui, a escrever ainda mais sobre vocês, estrangeira à vossa história, estrangeira na minha própria história. Olho para vocês, viajantes sem consentimento, e penso em mim, viajante privilegiada, emigrante de primeiro mundo. Trago também uma herança colonial do meu próprio país: é irónico, às vezes doloroso, às vezes injusto, que esteja a discutir estes temas numa terra que não é a minha herança.
5/10Entre nós partilhamos o sentimento de não pertencer nem a um sítio nem a outro — vocês, arrumadas numa instituição holandesa, eu, a tentar abrir caminhos noutra. No Het Nieuwe Instituut, somos ambas objetos de exotismo, vindas de terras de sol e calor, terras a que não iremos pertencer nunca mais. Quando volto a Portugal, sou tão estrangeira como aqui. É dentro e através deste desconforto que tento trabalhar, que espero trazer novas maneiras de ver. É assim que vejo o design contemporâneo, relevante, necessário: tem de ser desconfortável, movimentar-se em terras estrangeiras, sair da necessidade de resolver problemas, deixar de dar respostas, fazer mais perguntas.
6/10Nunca ninguém escreveu o que dizia. É inevitável ser eu a perguntar e a responder, mas mais do que vos dar outras histórias, quero focar-me em maneiras de as contar que desafiem como a história tem sido contada. É também assim que me movimento no desconforto da minha condição, pensando em métodos e não em resultados finais, em maneiras de fazer e não em formas de parecer. Esse processo transforma-se em estratégias e ferramentas que tentam escrever o que diziam — através da forma como trabalho em conjunto com vozes e corpos de quase todos os continentes e como chegamos a diálogos e não a conclusões. Através de palavras que se centram no cuidar e não no capitalizar. Através da luta para repensar o património e os contributos que foram necessários para que o fosse: em vez do autor único de mérito, ser a secretária, a assistente, a mulher, a colonizada, a fotografia na caixa, a nota de rodapé, a margem.
8/10Tento ser e fazer tudo isso, na esperança de devolver o design a quem sempre o fez e nunca foi ouvida, nunca foi lida. E fazê-lo publicamente para reconstruir outras casas e outras instituições, porque como nos disse Audre Lorde, “as ferramentas dos mestres nunca irão destruir as casas dos mestres”.
9/10Que direito tenho, que estrelas se alinharam, que terras pisei, que tempo encontrei, para estar aqui a escrever-vos sobre o que quero fazer do design e da investigação? Estou também ainda em processo de o descobrir.
Até à minha próxima carta,
Carolina
Haia, Fevereiro de 2022
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