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Carta a todas as mulheres designers esquecidas

Isabel Duarte

Carta a todas as mulheres designers esquecidas

Isabel Duarte 1/10

Cara amiga designer

Peço-te desculpa por não te ter procurado mais cedo. Mas porque peço desculpa? Eu não te esqueci. Ou será que somos todos cúmplices neste acto generalizado do esquecimento das mulheres?

2/10

Foram precisos alguns anos para conseguir canalizar a energia necessária para te ir procurar. Tudo começou com uma angústia por não me ver, enquanto mulher e designer, representada. Sempre estive rodeada de mulheres excepcionais, desde muito cedo na minha família, depois na escola e mais tarde na minha curta experiência profissional. Mas, de uma forma que parecia inevitável, os homens foram sempre ocupando lugares de relevância nesses meios: nas refeições em família estava quase sempre um homem à cabeça da mesa, os meus professores de design foram homens assim como foram, até agora, os meus superiores em trabalho. À cabeça do país está um homem, a falar-nos na televisão está outro, a curar a exposição está mais um, a editar uma colecção de livros de design está ainda outro.

3/10

Foi a Virginia Woolf quem me falou sobre o Anjo da Casa que vive dentro de cada mulher, e tal como a Virgínia, também eu tive de destruir esse anjo para ter a coragem de vos ir procurar, sabendo que essa procura perturbaria muitas pessoas, não só os homens que se sentam na cabeça da mesa, ou na secretária do editor, ou na cadeira do professor, mas muitas outras pessoas, entre elas, algumas mulheres. Penso que todas as mulheres, ou quase todas, reconhecerão o anjo da casa, esta anja de sexo feminino, que é intensamente solidária, amável, totalmente altruísta, lida muito bem com as dificuldade domiciliárias e sacrifica-se diariamente para o bem comum. Na sua pureza, a anja não tem vontade própria porque é sempre simpatizante com as necessidades e a opinião dos outros.

4/10

Talvez nem todas as mulheres sintam que tiveram de combater essa anja dentro delas, mas parece-me inegável observar que há em vários, pequenos e grandes, eventos na vida diária de uma mulher, a expectativa desta anja, a expectativa de uma maneira de ser e de estar que é mais sensata. Ainda hoje às mulheres é pago menos dinheiro pelo mesmo trabalho; elas são menos vezes chamadas para falar em conferências; são consideradas desagradáveis quando estão a ser assertivas; são maioritariamente responsáveis pelos deveres parentais; acarretam a maioria do trabalho doméstico; são interrompidas; sofrem paternalismo; entre muitas outras pequenas e grandes afrontas à igualdade de género.

5/10

Sentiste o mesmo enquanto mulher designer?

Achas que a esperada amabilidade contribuiu para que a tua voz fosse menos ouvida?

6/10

Vim à tua procura já faz mais de um ano. Pensei que iria encontrar poucas mulheres, mas na verdade, rapidamente encontrei várias. Segui uma ou outra pista, e depois em conversa com umas fui descobrindo outras. E que alegria que foi, conhecer o vosso trabalho, ouvir-vos falar sobre a vossa experiência, sobre os espaços por onde trabalharam, sobre os vossos colegas e os projectos que mais vos entusiasmaram. Inicialmente, algumas hesitaram antes de se abrirem, afinal a anja da casa dizia-vos que talvez esta acção de vos pôr a descoberto iria chatear alguém. Mas felizmente deixaram-me entrar no vosso mundo. Mas ao conhecer-vos comecei a questionar-me, afinal como funciona esta coisa do esquecer? Ao procurar-vos fiquei a saber que muitas de vocês não eram ignoradas quando trabalhavam, muitas ganhavam os concursos de design, faziam trabalhos de grande escala, participavam activamente em acções de divulgação e de organização do design. Mas, ainda assim, hoje estavam esquecidas. Em que momento o louvor passa a torpor?

7/10

Mas questiono também o valor do elogio, porque as razões pelas quais algumas pessoas são reconhecidas e outras não, são muitas vezes obscuras. Tão obscuras quanto as razões que dão o poder a alguém para nos atribuir ou negar valor. Mas o papel do historiador ou historiadora é também o de questionar de onde vem esse poder que decide quem é nomeado de interesse e quem não é. E é aqui que encontro outro problema: como valorizar as mulheres que nunca serão encontradas? E aí percebo que valorização não é só nomeação.

8/10

Faz sentido inscrever nomes de mulheres na história do design, mas faz também sentido, e talvez seja ainda mais produtivo, questionar porque é que certas formas de trabalhar em design são consideradas mais importantes do que outras. Acima de tudo, importa questionar a quem serve esta distinção? Há muito trabalho importante que é anónimo. Há o que ficou escondido nas trincheiras e por detrás do nome de outro alguém, invariavelmente um outro alguém homem que foi nosso patrão, que assumiu um estúdio em nome próprio e o assinou, mesmo tendo-o feito colaborativamente connosco. Há o trabalho que acontece nas agências, nas gráficas, nos jornais, nas revistas, na educação. Aquele que é feito para um grupo pequeno de pessoas, para uma comunidade, para uma iniciativa política, aquele que fazemos só para nós, para uma amiga. Em todas estas variantes participaram mulheres que foram esquecidas, e essas serão ainda mais difíceis de encontrar.

9/10

Então, em vez de te tentar encontrar, talvez faça mais sentido trabalhar para que esta profissão seja encarada com honestidade, tanto pela história, como pela sociedade, e deitar ao lixo esta distinção. Embora te procure, não me interessa fazer uma colecção de heroínas do design, interessa-me antes saber porque é que este teu trabalho, grande ou pequeno, bonito ou feio, interessante ou trivial, ficou esquecido. Interessa-me agir e perceber como posso fazer justiça a todas as mulheres designers esquecidas, para que o processo de memorização seja mais inclusivo e justo. Incluir é valorizar.

Cara amiga designer: o que podemos fazer para que as mulheres no design hoje não sejam omitidas amanhã?

Isabel Duarte
Londres, 
19 fevereiro 2022

10/10