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Carta a uma jovem designer – um apelo à sinestesia

Ana Sabino

Carta a uma jovem designer – um apelo à sinestesia

Ana Sabino 1/17

Pergunta-me uma jovem imaginária o que é preciso para se ser designer (diz-me a estatística que será uma designer, mais provavelmente do que um designer). Respondo-lhe: gostar de arte e de engenharia. E também de agricultura, matemática e geofísica. E cinema, e dança, e literatura.

Algumas das melhores aulas de design que tive não foram exatamente aulas de design. Passando à frente as aulas em que aprendia a ser pessoa tanto quanto a ser designer — injustamente, porque é tanto ou mais importante aprendermos a ser pessoas antes de qualquer outra coisa —, lembro-me, por exemplo, de uma masterclass de violoncelo, de uma tarde de escalada, de alguns conselhos para jovens escritores.

2/17

Assisti a essa masterclass apenas como curiosa pelo instrumento. Uma das quatro paredes da pequena sala onde ela se passava era composta por um enorme vidro sobre o relvado exterior. Nesse momento, a relva estava a ser aparada junto àquela janela, o que criava um interessante pano de fundo. Se olhássemos através do vidro, víamos um trabalhador concentrado na sua tarefa mecânica, empurrando uma máquina cortadora a motor. Ouvir, ouvíamos não o ruído grosseiro da máquina mas sim a melodia de um violoncelo, produzida por uma jovem mulher cuja vida era dedicada àquela arte subtil. Dentro, um cenário alcatifado, cadeiras confortáveis, som melodioso; lá fora, o sol, a relva, o suor. A experiência desse contraste fez parte da minha aprendizagem nesse dia.

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No fundo da sala, uma mulher com uma idade respeitável, falando inglês com sotaque eslavo, sentava-se ao lado de uma aluna. Estando ambas viradas para a pequena plateia, faziam daquele momento de aprendizagem uma atuação. A aluna tocava, pelo menos para o meu ouvido inexperiente, maravilhosamente. Mas a certa altura a professora interrompe-a. «Não, pára. Ouve o que estás a tocar. Sente.» A aluna inquieta-se um pouco, mas logo retoma. Pelo aceno de aprovação que a professora lhe dirige, percebeu o que se pretendia.

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«Ouve o que estás a tocar.» Aparentemente tão simples, quase vazio até, mas, bem pelo contrário, tão cheio de sentido e pertinência. É certo que quando nos embrenhamos em tecnicismos, ou somos levados sofregamente pela corrente da inspiração, perdemos a clareza no olhar. Mas esse retomar da consciência é essencial para garantir a qualidade daquilo que estamos a fazer. Vê o que estás a fazer. Sente. E, também, lê o que estás a fazer. Quantas vezes um cartaz ou outro objeto de comunicação — e atente-se na palavra comunicação — falha porque as pessoas envolvidas na sua produção se deixaram levar pelo processo e não pararam para se colocar no lugar de quem lê, quem vê, quem recebe?

5/17

No caso da tarde de escalada, vi-me, com algum embaraço, num lugar mais central. Estava a aprender, também curiosa com esse desporto. Tentava subir uma escarpa junto ao mar. Parei a certa altura; não conseguia avançar. Tacteava a rocha à procura de pontos de apoio mas não conseguia libertar-me do lugar seguro onde os meus pés se tinham fixado. Lá de baixo, quem me acompanhava grita: «Põe o peso no outro pé!». E foi o que fiz. Mesmo mantendo os pés exatamente no mesmo sítio, desloquei o meu centro de gravidade para o lado contrário, o que me permitiu libertar o outro lado do corpo, e assim encontrar novos pontos de apoio para avançar a partir de um ponto onde me achava completamente estagnada.

6/17

Era fim de semana. Sei que na segunda-feira seguinte usei exatamente a mesma estratégia num trabalho da faculdade. Não estava a conseguir avançar, não saía de um certo ponto. Até que tentei pôr o peso no outro pé. Deixei de dar importância àquilo que me prendia e impedia de continuar e concentrei-me noutros aspetos do trabalho. Foi simplesmente isso, uma deslocação da importância, que prontamente me desbloqueou o processo criativo e me permitiu avançar. Desde então, sempre que me encontro num lugar a partir do qual não consigo progredir, ponho o peso no outro pé.

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Em relação aos conselhos para jovens escritores, ocorrem-me aqueles que dão, precisamente em cartas a jovens poetas, Rainer Maria Rilke e Virginia Woolf (ambas numa mesma e ótima edição da Relógio d’Água). Como o editor faz notar no prefácio, Woolf aconselha a que se olhe pela janela o mundo lá fora; Rilke, a que se procure dentro de si mesmo e se concentre na sua solidão. Ambos estão, obviamente, corretos. O importante, veja-se bem, é aquilo que os une: o apelo a que se olhe.

De resto, o conselho que mais unanimemente se ouve nessa área é simples: para aprender a escrever a escola mais adequada é a leitura e a escrita. E a vida, não esquecer a vida, que é aquilo que se coloca na escrita.

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Mas o que tem o design a ver com a literatura, com atividades ao ar livre, com aprender um novo instrumento? Tudo, literalmente tudo. Porque, se estivermos dispostos a isso, tudo se interliga. Um livro é uma viagem no tempo. Cada página é um passo. Dominar a arte da narrativa é dominar a arte de levar o leitor / ouvinte / espectador pela mão, em passeio. Uma exposição é um mergulho em informação: verbal, visual, tátil (e até mesmo olfativa e auditiva). Um logótipo — um haiku, uma síntese.

Sim, também se aprende a ser designer lendo, escrevendo, vendo filmes. Eu estou certa de que aprendi assim. Quando cheguei à faculdade tinha já algumas competências para estruturar uma narrativa, pensar em ordem de leitura, captar e manter a atenção de quem olha. Como o tinha aprendido? Lendo, escrevendo. Depois, foi uma questão de aprender a linguagem visual e aplicar-lhe aquilo que até aí fazia de forma empírica com a verbal. E, para isso, o cinema ajudou bastante. Mas, naturalmente, para outras pessoas esse processo será diferente. Para ti será diferente.

9/17

Não julgues que me esqueci de ter falado, além de literatura, em agricultura, matemática e geofísica. Não tanto porque o caminho pode passar por elas, mas sim porque, como designers, devemos ser essencialmente curiosas: a curiosidade em relação a outras disciplinas deve fazer parte da nossa constituição. Ser designer é, de certa maneira, ser clarividente. Quando um cliente entra pela porta (hoje em dia, normalmente, na forma de um email), tentamos descortinar o que é que ele realmente precisa, para além daquilo que nos pede. E conseguir criar uma imagem que se adeque tanto ao seu pedido quanto a essa necessidade ulterior. É bom, portanto, percebermos de pessoas. É melhor ainda se conseguirmos partilhar dos seus interesses — ou, pelo menos, entendê-los.

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Para perceber de pessoas, é claro, nada como lidar com pessoas. Mas conheço dois processos que aceleram bastante esse processo. Um é viajar. Quando viajamos despimo-nos das nossas comodidades e, com sorte, dos nossos preconceitos. Estamos, em certo sentido, desprotegidos, longe da casa que nos protege e nos acolhe, e somos expostos nessa condição a experiências novas, pessoas novas, ambientes novos, hábitos novos, sons novos, cheiros novos. Não é raro que nos saibam a casa; não é raro acabarmos por trazê-los para casa. A eles, e às pessoas que conhecemos.

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O outro é ler. Quando lemos somos também transportados: voluntariamente transportados para dentro de outras pessoas, mesmo que fictícias. Vivemos várias vidas de cada vez que abrimos e fechamos um livro. São ambos excelentes aceleradores de experiências. São, portanto, ótimos para pessoas vorazes de vida.

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Quando lemos, podemos ir sublinhando o que nos interessa. Mas o que nos marca num livro não é necessariamente aquilo que sublinhamos. É aquela frase, aquela cena, aquela ideia, que no dia seguinte se repete na nossa cabeça e não conseguimos esquecer. A procura de um logótipo, por exemplo, ou da imagem para um cartaz, é semelhante a isto. Devemos ir lendo a marca, o produto, o cliente, a entidade, o evento, e sublinhando o que nos interessa. Aquela súmula perfeita que conseguimos transformar numa forma gráfica surge depois, muitas vezes entre olhar para um tipo de letra e escolher uma cor; outras vezes entre lavar o cabelo e escovar os dentes. A vida acontece e a arte acontece, às vezes intercaladas uma com a outra.

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Repara: tenho dito para estares atenta à vida, e falado pouco sobre estar atenta ao design. É claro que é importante também estar sintonizada com o espírito do tempo, saber quais os tipos de letra, cores, e formas de organizar a página que se estão a usar no momento. Mas nada de novo virá dos mesmos sítios de sempre. O que é realmente novo vem de um lugar inesperado, um campo misterioso onde corre, como aragem, a inspiração. Essa inspiração que, como já foi dito por outras pessoas, é parceira indissociável da transpiração — mas também da intuição e da observação. É preciso manter essas ferramentas sempre muito bem aguçadas.

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Quanto à arte e engenharia com que comecei a carta: penso muitas vezes que o design é uma hábil mistura das duas. A arte, creio, é autoexplicativa; não é por acaso que se ensina design em escolas de Belas-Artes ou de Artes em geral. A engenharia deve-se ao facto de ser altamente aconselhável termos em conta considerações técnicas, para além das estéticas. Cuidarmos da função, criando objetos que cumprem um papel, se inserem na complexa engrenagem da sociedade. Eles serão fabricados em massa por máquinas ou expostos através de ecrãs luminosos, com as suas restrições técnicas inerentes. Teremos sempre que lidar com esse facto, por isso é bom aprendermos o seu funcionamento. Sermos mestres na nossa técnica vai melhorar bastante o impacto estético do nosso trabalho. É um ofício, não o esquecer. Tu, jovem designer, és aprendiz.

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No design, bem como em qualquer outra arte, pura ou aplicada, há muito para aprender e muito para ensinar. Mas depois há o intangível. Como professora, tenho muito gosto em ensinar tudo aquilo que aprendi na profissão e me parece transmissível. Tenho ainda mais gosto em ir lançando flechas para esse território inatingível, não sabendo bem quais, quando ou onde vão acertar.

O intangível não se ensina nem se aprende: nasce. E não digo que nasça connosco, quando nós nascemos. Pode acontecer, assim como pode nascer mais tarde, espontaneamente, se o terreno for propício. A única coisa que podemos fazer é cultivar o terreno, torná-lo fértil. E esse terreno cultiva-se com cultura, está claro. Cultiva-se com cultura e nutre-se com vida, da qual devemos extrair todo o suco. Creio ter deixado este ponto claro. Vertemos para fora aquilo que colocámos para dentro, numa lógica de input / output.

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Por isso, se me pedes um conselho final, digo-te: sê gulosa. Aprecia com todos os sentidos tudo o que estiver ao teu alcance e te pareça interessante. Sê voraz. E depois, vê / ouve / sente o que acontece.

um abraço,
Ana Sabino

Monte dos Burgos, 14 de janeiro 2022

SOM: “La Muerte del Angel” de Astor Piazzola, interpretada pelo Ensemble de Violoncelos da ESART–IPCB sob orientação da prof. Ana Raquel Pinheiro. Gravação ao vivo em concerto em março de 2022. Composição do Ensemble: Violoncelo 1: Diogo Martins, Mariana Rodrigues; Violoncelo 2: Anna Juhasz, Matheus Borges, Ana Carolina Pereira; Violoncelo 3: Mariana Neves, Simão Lamego, Carolina Correia; Violoncelo 4: Catarina Putzger, Verónica Godinho, Igor Loureiro.
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