Carta para o pai Gabriel
Cândida Teresa RuivoOlá pai!
Escrevo-te hoje para te falar do curso que tirei nas Belas-Artes, porque enquanto pudemos falar sobre ele ou eu não te sabia explicar o que era ou eu não sabia muito bem o que andava a fazer…
2/12Comecei a escrever porque calhou ter hoje nas mãos os dois certificados de habilitações que, por causa das papeladas para pedir a aposentação, me vieram parar às mãos: o da licenciatura e o do bacharelato! Fiquei a olhar para eles e para as disciplinas que fiz e apercebi-me de como teria sido fácil ter-to explicado na altura: até ao bacharelato, tinha algumas disciplinas teóricas na continuidade das do Liceu, umas práticas que podia escolher (Fotografia, Gravura), Desenho, umas novidades para mim (Antropologia Cultural, Comunicação Visual), Iniciação às Artes Plásticas e, finalmente, o Design (Introdução ao Design, Design e Tecnologia do Design); nos anos seguintes, que me levaram à Licenciatura, lá chegou finalmente a Teoria e História do Design e a fantástica Projeto e Orçamento! As teóricas eram um complemento precioso, mas aquilo de que estava mais sedenta era o Design, esse desconhecido, um fazer desenfreado de objetos gráficos sem uma contextualização de maior.
3/12Portanto, quando muitas vezes me perguntavas o que era isso do Design, respondia-te dando exemplos do que fazia: ora eram cartazes ora desdobráveis, ora paginações ora logotipos… também houve a sinalética para a escola, papel de embrulho e um quiosque para a feira do livro (um matacão que não quero sequer lembrar nunca mais…); rótulos para a água do castelo, estacionário com logo novo para a carris… enfim, um sem fim de trabalhos que partiam regularmente de um enunciado, datilografado — sem um pingo de grafismo —, policopiado numa offset caseira que funcionava com uma matriz de papel encerado. As indicações/ enunciados que recebíamos no início eram parcas. Os seguimentos feitos pelos professores acerca do que íamos desenvolvendo era onde aprendíamos mais: eram aulas de desenvolvimento acompanhado, caso a caso, onde a sistematização era vaga e onde o saber sobre a disciplina era dado na recomendação de ver o que já se tinha feito do mesmo tipo.
Foi assim o curso. Conto-te o antes para perceberes como foi o depois…
4/12Os alunos eram poucos e, mais do que trabalharmos em conjunto, conversávamos muito, fazíamos muitas RGA e na Associação de Estudantes tínhamos atividades que oscilavam entre servir almoços na cantina da escola e fazer a revista ArteOpinião, que teve mais ou menos 20 edições e que te mandei religiosamente para Nampula, porque tinha o meu nome na ficha técnica (acho que era maquetista ou paginadora…) e que foi o meu primeiro trabalho a sério.
Olhando para esses anos distantes, sinto que estava a treinar para ser tarefeira do tal Design que me entusiasmara ao ponto de ter trocado meu sonho de ser escultora para ser designer.
Feitos os cinco anos de licenciatura, e depois de já te ter enviado o diploma de bacharel, mandei-te o certificado da licenciatura, porque o diploma só foi passados 10 anos… E lá veio a pergunta sacramental: “E agora filha, o que é que vais fazer com esse curso de Design?” A verdade é que eu própria não sabia.
5/12Tinha começado a dar aulas de Educação Visual e a trabalhar num jornal diário. Contei-te na altura que me perguntaram no jornal se tinha feito o curso no estrangeiro porque metade do nome era em inglês… Também me perguntaram se sabia converter linhas de texto escrito à máquina em linhas de jornal e se sabia decalcar letra set. Como disse que sabia fui aceite. E eu que nunca tinha feito um jornal, fui atirada para uma voragem de contar/converter linhas, maquetizar à mão, acompanhar a sua montagem em papel fotográfico e depois a passagem a película e depois à chapa e até, por vezes, acompanhar a saída do jornal na rotativa.
Era aquilo em que se transformara ser o meu trabalho de designer. Não era criar coisas, mas eram tarefas pelas quais me apaixonei e que me fizeram muito feliz. Cheguei a diretora gráfica de dois semanários, um de música e um de desporto automóvel — a empresa tinha de otimizar os funcionário, olaré!
6/12A vida foi dando voltas. Algumas delas já as acompanhaste, porque já tinhas regressado de Moçambique e estavas contente com o rumo que o tal curso que te inquietava tanto me tinha dado à vida.
Lembraste de quando eu disse que ia deixar os jornais — nessa altura já era o BLITZ — e que ia voltar às Belas-Artes para mestrar? “Outra vez filhica…” Eu disse-te que queria pensar nas coisas que fazia. Saber fazê-las estava resolvido. Queria perceber como é que se pensava.
E de regresso à então já FBAUL, percebi como todo o curso estava mudado: os alunos eram muito mais, as disciplinas mantinham os mesmos nomes mas o que se desenvolvia nelas era muito mais pensado, pesquisado, discutido no que eram os conceitos que presidiam ao que se queria fazer, para quem se queria fazer…
Uau! aquilo era tudo muito mais interessante do que o meu tinha sido.
7/12E aconteceu o milagre: a meio do mestrado abriu concurso e eu entrei como professora em Belas-Artes — tinha experiência profissional, muito treino de dar aulas no secundário e isso era importante para dar aulas ao primeiro ano, a famosa IAPD. Lembro-me de te ver espreitar uma lagrimita quando to disse. Sentiste-me finalmente bem entregue na “minha casa”. Também mandei uma carta ao Vamona, o professor de desenho no Liceu — que tinha sido aluno das Belas-Artes na pintura e que sempre insistiu que era a escola para onde eu devia ir. Também ficou todo contentinho lá em Goa para onde tinha regressado.
E eu contentinha estava! E dei aulas ao primeiro ano durante 20 e tal anos.
Nos primeiros anos estranhei como e o que se ensinava aos alunos. Pensava-se muito antes de começar a fazer. As disciplinas que tinham apontavam para o entendimento e para o conhecimento do que era o Design como uma disciplina com uma história, uma maneira de fazer, que tinha metodologias próprias. Projetava-se e experimentava-se muito.
8/12Comecei a ver o que era o Design para além dos objetos gráficos. Foi dos momentos mais gratificantes da minha vida: começar a encaixar o que tinha de prática de trabalho numa maneira de pensar e de trabalhar com sentido, e poder ensinar isso aos meus alunos.
A coisa foi ficando cada vez mais complexa e mais divertida. Tu sabes como eu gosto de aprender… Coisinha que herdei de ti pai Ruivo! Aprendi de Tipografia e de Teoria do Design, de História do Design, de como todas as disciplinas são importantes para um trabalho, o que se passa no mundo e na vida das pessoas, das cidades, da política, da cultura… Fui alargando muito o que precisava de saber e de ler, de ver, para poder acompanhar as diferentes necessidades dos diferentes projetos (deixaram de ser trabalhos…) de cada aluno. Acabei por dar aulas de outras disciplinas ocasionalmente, mas nunca deixei o primeiro ano.
9/12Fartei-me de aprender! Não terei ficado melhor professora por isso mas fiquei a ser uma professora a saber cada vez mais coisas. Depois vieram as restruturações do Curso. Mudaram-se os currículos e criaram-se finalmente disciplinas que estavam de acordo com o papel do designer na sociedade como elemento ativo e potencial transformador da vida das pessoas: na prática, com objetos projetados/ pensados e na forma de ser participativo e pró-ativo na mudança do mundo.
As tecnologias adaptaram-se durante esse tempo todo às novidades que surgiam e para as quais era necessário estar a par para que os alunos também o estivessem (eu que quando cheguei só sabia — e mal — trabalhar com uns programas de paginação e edição de imagem, aprendi tudo o que pude e não pude para poder acompanhar os alunos… sempre que havia um workshop de uma coisa qualquer, lá estava eu a aprender ao mesmo tempo que os alunos: foram muitos sábados bons!).
10/12Hoje continuo a dar aulas ao primeiro ano. Diferentes em tudo das que as que tive no meu curso e de quando reentrei na FBAUL. Muito mais interessantes para os professores e para os alunos. Os programas de cada unidade curricular — também já não se chamam disciplinas… — são adaptados cada ano e têm pelo menos uma dezena de páginas paginadas cuidadosamente; as bibliografias são adaptadas ao temas a desenvolver; os objetos pedidos em cada projeto que é apresentado com enunciados específicos; as pesquisas são colocadas à frente das propostas que os alunos apresentam. Os alunos para além disto tudo, são convidados a ver filmes, a ouvir música, a ver exposições, a olhar o mundo com abrangência e sentido crítico.
11/12Mais do que explicar-te o que é que andava a estudar quando tu me perguntavas o que era aquele curso, gostava de poder explicar-to agora. Havia de ser uma conversa mais bonita e com mais assunto para tu fazeres mais perguntas.
Como essa conversa já não pode ser feita, ficou esta cartinha. Mais do que isso, este bocadinho que estive a escrevê-la, foi como estar contigo. Também é bom.
E pronto. Podia alargar-me mais: contar-te o que é que irá ser a minha vida de reformada-um-dia-destes…
Disso só sei que vou ter saudades de dar aulas.
Mas como me ensinaste, sabemos os dois que as coisas não são eternas. E mais vale sair quando se está bem.
Beijos e saudadinhas, pai lindo!
Cândida Filha
Lisboa, 5 de abril de 2022
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