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Companheiros e companheiras do acaso

Luís Carrôlo

Companheiros e companheiras do acaso

Luís Carrôlo 1/17

Companheiros e companheiras do acaso:

Por acaso nasci em 1946.


É um privilégio viver esta transição, a segunda metade do séc. xx, e este início do séc. XXI.

Foi no primeiro mês de verão, numa aldeia rural nos confins do interior, no limite
da linha imaginária que divide a baixa da alta Beira na casa da aldeia dos meus avós paternos onde os meus pais, trabalhadores rurais, se mantiveram após o casamento.

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A parte rural ficava a meia hora para lá da aldeia onde fazia margem com o Zêzere, ainda pequenino. Não fosse o por acaso de ter apanhado aos nove meses a poliomielite e o meu percurso de vida teria sido tudo o que foi e o seu contrário. Com esta criatura coberta e agarrada à mãe pelo xaile, palmilhámos as duas Beiras: tudo se consultava na procura da solução para recuperação. Ao fim de meses rumei à capital para casa de uma tia, a fim de receber tratamentos na pediátrica Estefânia.

Por acaso, os tratamentos eram prolongados e não se imaginava o limite. A minha mãe embrulhou-se no xaile e voltou à aldeia, onde a família ainda pequena, dois irmãos — eu sou o terceiro de seis rapazes — e o pai ansiavam pelo seu regresso e onde a avó ficou no cuidado nos entretantos.

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Eu lá fiquei, ao cuidado da tia, das suas duas filhas e do tio comerciante. Por acaso, as hipóteses surrealista e esotéricas de tratamentos aumentaram exponencialmente, não estivéssemos agora na capital e, pior, não se imaginava ainda o grau da imaginação rumo à cura e regressão do vírus. Foram desde sanguessugas hospitalares na Estefânia a envolver o pescoço e as costas até à imersão total em mosto novinho, numa adega em Ota, numa selha ou dorna de carvalho — um objecto de formato e construção da pipa — com os aros de metal a consolidar o perímetro, mas só meio pela altura, ficando com um formato de um grande alguidar. Só para citar o que a memória recorda: eu, com dois anos, cabia sentado e onde apenas restava de fora, do limite do mosto, a cabeça. Admito que talvez esteja aqui a razão porque nunca gostei de vinho, nem às refeições que em casa era um ritual cumprido, a preceito.

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Por acaso, o médico neurologista que me atendeu na Estefânia começou a seguir-me com regularidade, agora no seu consultório, que era ali pelas avenidas dos médicos, que iam todas dar ao Marquês de Pombal. Este médico contribuiu decisivamente para o meu desenvolvimento — criança à adolescência — nas ortopedias para auxílio de marcha, nas intervenções cirúrgicas de correção e na orientação escolar e profissional. Foi o grande conselheiro que a família ouvia e agradecia, ele representava a sensatez, o conhecimento, naquela época o grau máximo do saber como era o exercício em medicina.

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Por acaso, já passado da adolescência, empenhado que sempre esteve no desenvolvimento da minha autonomia e integração nestas actividades das artes — para as quais sempre me achara com competências — comunica-me que tinha um familiar pintor que gostaria de falar comigo sobre um projeto que tinha e que lhe parecia interessante eu participar dado o acaso e a circunstância de ter terminado a formação de desenhador gravador litógrafo na António Arroio — entre as andanças dos TPC e as muitas festas a qualquer pretexto, que fermentaram a minha cidadania.

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Admito que do ponto de vista da aprendizagem, senti que as práticas artísticas foram muito rudimentares: as aulas teóricas, com um curriculum indefenido, nunca nos deram informação ou orientação para onde a procurar, nem a gramática ou o incentivo a desenvolver. Não havia método; cada professor tinha uma forma muito particular e casuística de desenvolver essa informação, era tudo muito ocasional e muito dependente do jeito do mestre.

O projeto consistia em nos agruparmos para formalizar um atelier de serviços muito semelhante ao que na época existia e se exercia em agências de publicidade. Qual a diferença então? Por causa dos custos havia uma fatia das empresas que não tinham acesso a estes serviços, e que uma estrutura mais pequena, com custos mais baixos como a que queríamos formar, poderia responder à necessidade deste potencial mercado.

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Assim criámos a Práxis (Cooperativa de Estúdios Técnicos, S.C.A.R.L.) fundada em 1968, com os estatutos de “Cooperativa de Produção”, antes de tudo porque a cooperativa era a forma mais barata de nos associarmos e criarmos uma entidade jurídica que pudesse operar no mercado. Como a normalidade eram as “cooperativas de consumo” e essas estavam sujeitas à aprovação prévia do Ministério da Administração Interna ou do Ministério da Justiça antes da escritura formal no notário, a Práxis não passou por essa aprovação prévia dado o seu estatuto referir “Cooperativa de Produção” que assim cumpria todos os parâmetros legais do Código das Sociedades Comerciais em vigor.

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Chegámos a ser cerca de 70 cooperantes em full e partime. A inédita e grande novidade foi a forma como se estabeleceu a distribuição das remunerações aos cooperantes “a cada um, de acordo com a sua participação” — para o qual se estruturou todo um processo e método de produção que culminava na divisão e contabilização das verbas distribuídas a cada um. As operações tinham tantas variáveis que a dada altura só com o recurso de um computador IBM de cartões perfurados se conseguia em tempo útil contabilizar as distribuições pelos intervenientes nas tarefas.

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A Práxis demonstrou que uma estrutura cooperativa era compatível com uma economia de mercado, criou competências para concorrer na prestação de serviços altamente qualificados. Para os mais atentos, aqui fica em resumo de como funcionava “a cada um, de acordo com a sua participação”, como se formavam os preços dos trabalhos e como se repartia o facturado:


1. Para cada actividade procurou-se no mercado o custo de hora máximo e mínimo. Com esta base elaboramos uma tabela que era a usada por todos, cada qual na sua actividade.


2. Cada proposta/encomenda era dividida por itens que correspondiam às diversas fases exigidas para executar o trabalho em causa.

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3. Antes das divisões eram retiradas as intervenientes percentagens fixas para creditar os Gastos Gerais ou Custos Indirectos como eram conhecidos (secretariado geral, como telefones, dactilografia, estafetas motorizados, ou não, contabilidade, arquivos e manutenção geral, como limpezas e economato geral). E todos os outros que tinham ligações directas com o mercado (arquitectura, artes gráficas, fotografia, contabilidade, marketing, meios e publicidade) eram fornecedores uns dos outros. Todos os serviços se dividiram em sectores de produção que distribuíam entre si, como todos os outros sectores o faziam.

4. Custos directos como materiais ou execuções exclusivos para o trabalho.


5. Cálculo de horas para cada tarefa dos diferentes e necessários colaboradores determinada pela direcção de equipa.

6. A soma de tudo isto era a proposta de custos final entregue ao cliente.

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7. A cada cooperante era creditada a percentagem devida da tarefa ou tarefas em que tinha participado. Dessa soma era retida uma percentagem para o Fundo Social que era a formação de Capital (próprio) da Práxis – era por aqui que os Bancos analisavam a capacidade de endividamento porque o capital inicial obrigatório era baixo, 100 Escudos por cooperante como eram 10 o número mínimo de sócios, totalizava 1000$ de capital inicial obrigatório. Deve-se acrescentar que a constituição do Fundo Social foi uma inovação da Práxis, que passou a regra nos estatutos das cooperativas de Produção.


8. Como os créditos eram flutuantes, constituiu-se uma conta corrente de cada cooperante, e era a média desses créditos que determinava o que recebia como ordenado. Como era flutuante, se houvesse saldo positivo recebia um pouco mais para na média a diferença colmatar os meses em que tivesse havido menos crédito e, logo, tivesse recebido menos.

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Na Práxis participei na elaboração dos estatutos e na escrita de constituição, onde reuni, discuti, aprendi, trabalhei e estabeleci amizades para a vida. Por acaso, num dos nossos fornecedores, tive das mais memoráveis experiências, discussões e troca de saberes, foi a verdadeira Academia das Artes Gráficas — a Oficina Gráfica da Manuel A. Pacheco. Com o Sebastião Rodrigues, velho cliente e que nos levou até eles; o tipógrafo Portalegre, que me pôs nas mãos o componedor e em frente uma caixa de tipos para compor os dizeres do impresso, que tinha projectado; e o técnico de artes gráficas mestre João Gonçalves que na chapa de offset, montada na máquina, me ensinou a rebaixar o ponto da quadricromia. O Daciano da Costa, que desde sempre foi um grande entusiasta da cooperativa, sempre que possível proporcionou-nos trabalho. No seu atelier passava largos tempos, como elemento destacado pela Práxis, para apoiar e desenvolver as ligações e as tarefas necessárias para as realizar.

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Foi com o Daciano da Costa e o mestre Frederico George que importaram, desbravaram, implantaram, consolidaram e ensinaram em Portugal estes novíssimos saberes dos ofícios de designers com quem aprendi o que tenho praticado. Cada tarefa tinha uma metodologia, que nos obrigava a procurar as fontes e respectiva documentação que a apoiasse, que, depois de reunida, era analisada pelo grupo de trabalho que a discutia e selecionava e onde se apontavam as saídas a estudar e desenvolver no projecto encomendado.

Por acaso, tem sido assim a minha formação.

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Com o 25 de Abril veio a dissolução da Práxis e o surgimento de várias outras cooperativas, cada uma correspondendo aos diversos sectores em actividade. Mantivemos o sector do design para garantir o nosso trabalho e alguns cooperantes — a Assunção Cordovil, a Filipa Tainha, a Maria José Beldock, o José Luís Borga e o Luís João. Mais tarde, em 1978, também acabou por ser dissolvido este setor — parte destes cooperantes foram integrados no RISCO de Daciano da Costa, onde já colaboravam Fernando Conduto, António Garcia, Vasco Lapa, Cristóvão Macara, onde fui administrador e designer. Esgotado o meu projecto no Risco passei a exercer o meu trabalho em regime liberal.

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Entretanto, promovo juntamente com outros colegas deste mesmo modo de vida, a formação da Associação Portuguesa de Designers. Participo na elaboração dos estatutos, na constituição jurídica e nalgumas das direcções, tendo tido o privilégio de ter escolhido o número 7 como sócio, sendo o número 1, atribuído por birra ao activíssimo Vitor Manaças.

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A partir daqui começa a fase mais tecnológica da minha actividade com o fax que
me poupou muita deslocação pela cidade para ver, ler e reler as provas de tipografia. Nas gráficas assisti à mudança, primeiro na fotocomposição, depois na contaminação digital a todos os outros sectores o que naturalmente obrigou a uma novíssima aprendizagem que nunca mais parou, dada a exponencial evolução.

Aos homens e mulheres que directa e indirectamente participaram neste pulo tecnológico que trocou a Olivetti pela Apple e me obrigou em tudo e de tudo, a participar de um modo qualitativamente diferente fica o meu profundo agradecimento.

Luís Carrôlo

Lisboa, 28 abril de 2022

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