Querida Cândida
Contra-EstúdioQuerida Cândida,
Neste ano que começa vamos celebrar o décimo aniversário da nossa entrada no curso de Design de Comunicação nas Belas-Artes, em Lisboa. Celebramos, por isso, 10 anos em que te conhecemos, durante os quais passaste de nossa professora a nossa amiga, e te tornaste numa figura muito importante para nós, alguém que admiramos, a quem damos ouvidos e cujo nome rapidamente surgiu quando nos convidaram a escrever esta carta. Ainda bem que passam 10 anos de alguma coisa, porque assim também temos tema para a empreitada. Um olhar sobre 10 anos no design em Portugal — usaríamos como título pomposo e desinspirado, mas o que queremos mesmo é pôr-te a par daquilo que temos feito e daquilo que queremos fazer a seguir. Em jeito de conversa com um café e cigarro, daquelas que deixámos de ter, primeiro porque os nossos percursos quotidianos em Lisboa se foram afastando e depois porque entrámos neste périplo da pandemia. Estas conversas sempre foram boas para pôr as nossas próprias ideias em ordem, mas desta vez queremos tê-la à vista de todos, esperando que no processo saiam algumas observações úteis sobre o design, a partir do nosso ponto de vista: Um olhar sobre 10 anos no design em Portugal 😎
2/15A nossa passagem pelas Belas-Artes foi um grande privilégio porque nesses três anos aprendemos realmente as bases do que fazemos hoje na nossa vida profissional e não só. Foram anos felizes e enriquecedores, e isso não é coisa pouca. Tivemos a sorte de, em plena crise financeira, encontrar uma universidade pública que, com todo o peso da burocracia e da austeridade em cima, com muitos defeitos, atrasos e remendos, se dedica genuinamente a servir o país, ensinando. À escola pública, e a todos os que nela trabalham, devemos um enorme agradecimento e custa-nos vê-la atacada por cínicos que a querem vender aos mercados, como também nos custa ver que ainda há muitos jovens que não conseguem aceder ao ensino superior por dificuldades financeiras ou devido a diversas formas de descriminação com que se deparam nas suas vidas.
3/15Feito o agradecimento, também é evidente para nós que na faculdade construímos uma imagem distorcida do mundo do design fora dela, o que deve ser verdade para todas as gerações de recém-licenciados. Ainda assim, só depois de acabarmos o curso é que vimos brexit, Trump, Bolsonaro — estes e outros fenómenos sociais e geopolíticos que abalaram o otimismo tímido que marcou o nosso fim de licenciatura. Muitos temas que abordámos nas aulas como espectros da história ou da filosofia materializaram-se à frente dos nossos olhos — tragédias, horrores, o medo, mas também o novo, inesperado, luminoso e resilientemente cómico. Também só mais tarde vimos o que acontece quando o mundo pára e tanta coisa muda em dois anos (e ainda a contar) por causa de um vírus. Parece que todas as retrospetivas têm de arranjar maneira de enfiar esta parte dos “grandes acontecimentos”, mas não podemos omitir o facto de que a nossa imaginação em 2015 era muito limitada e os anos seguintes trataram de a desmontar um pouco à bruta.
4/15A melhor parte de sermos designers saídos de um bom curso, com alguns contactos profissionais e a viver juntos, é que pudemos entrar neste período incerto a fazer as coisas de que gostamos — a projetar, a produzir imagens, a comunicar com os outros e a ajudar os outros a comunicar. Este percurso profissional iniciou-se para ambos em 2015 ainda dentro das Belas-Artes, em diferentes iniciativas que surgiram, para nós, na altura certa, uma vez que a renda cada vez mais alta não se ia pagar sozinha. Ao mesmo tempo, fomos dando os primeiros passos enquanto trabalhadores independentes, aproveitando todas as oportunidades que surgiam. Foi um período de crescimento pessoal e cultural, em que vivemos mais intensamente esta cidade que nos acolheu, em que fizemos novos amigos, contactámos com pessoas que nos alargaram os horizontes e descobrimos possibilidades entusiasmantes que desconhecíamos durante o curso.
5/15O momento importante que se seguiu deu-se em 2018, quando decidimos assumir o nosso trabalho conjunto, sem saber bem o que era realmente essa coisa. É um estúdio? Mas nós trabalhamos a partir de casa! Um portefólio partilhado? Para quê? Um endereço de email comum? Para isso mais vale estarmos quietos! Por esta altura as nossas situações profissionais eram um pouco diferentes: a Laura já trabalhava há algum tempo como designer de comunicação n’A Vida Portuguesa, emprego que mantém até hoje, e o Guilherme arriscava o primeiro ano inteiramente como freelancer nas áreas do design, da escrita e da edição. Assim nasceu o Contra-Estúdio que, na prática, é uma assinatura do trabalho conjunto que já fazíamos há alguns anos, e um website onde apresentamos esse trabalho, mas também outros projetos individuais.
6/15No mesmo dia em que lançámos o website conseguimos o nosso primeiro cliente, uma loja de tecidos da baixa lisboeta. Nos anos seguintes, o pequeno comércio foi talvez o setor com quem trabalhámos mais, mas também projetámos para a arte, para a cultura ou para a política local. Para nós os dois, o Contra-Estúdio é ainda uma atividade mantida em paralelo aos trabalhos diários, e por isso os projetos que desenvolvemos até aqui são de pequena ou média dimensão, tanto nas exigências práticas e materiais como nos orçamentos. Ou seja, não é com isto que pagamos a renda, mas gostávamos que um dia pudesse ser. A nossa experiência no design não é apenas curta, como também é muito particular. No entanto, não temos dúvidas nenhumas que quem nos lê agora provavelmente estará numa situação também ela particular, diferente da nossa, mas igualmente precária. Este foi um facto que constatámos sem surpresa à saída do curso, quando decidimos não emigrar.
7/15Já sabíamos ao que íamos e fazer uma licenciatura durante os anos da troika não podia dar esperança de muito mais. Por isso, a nossa curta história de aprender a ser designers é também uma história de aprender a sobreviver numa cidade cara, longe da família, num país eternamente afundado em crises, inseridos numa geração que as coleciona. Não dizemos isto para que tenham pena de nós ou nos dêem o desconto, mas porque nem nós nem ninguém que nós conhecemos adormece e acorda todos os dias a pensar nas lindas e brilhantes coisas que vai fazer no seu trabalhinho de sonho. O mais provável é passar as noites sem dormir por causa dos problemas financeiros, quotidianos e corriqueiros que se agigantam sobre tudo.
8/15O facto de o Contra-Estúdio não pagar as contas, e por isso dependermos de outras fontes de rendimento, acabou por tornar o nosso trabalho conjunto num espaço de ainda maior liberdade e experimentação, onde podíamos ir testando e abandonando ideias pré-concebidas, pondo em prática os conhecimentos que trazíamos do curso e de outros trabalhos, e pelo caminho ir descobrindo a nossa própria postura. Ao trabalharmos com clientes que têm negócios ou organizações mais pequenas, pudemos explorar relações de proximidade, modelos colaborativos em que conhecemos bem o alvo da nossa intervenção, desenhando abordagens adaptadas às exigências de cada projeto, onde — e este é um dos aspetos mais importantes para nós — valorizamos e tentamos dignificar todo e qualquer ato de comunicação visual, por mais pequeno ou insignificante que ele possa parecer.
9/15Na faculdade demos sempre grande importância aos projetos glamorosos das identidades, os planos de comunicação multifacetados, complexos guias de identidade e campanhas de intervenção gráfica. Sim, também fazemos disso no Contra-Estúdio, mas o nosso território tem sido sobretudo o do post, da story, do cartaz digital, do cartão de visita, da pequena embalagem, e por aí fora. Aprendemos a gostar destes desafios e a encará-los como momentos de alegria no trabalho. Também nos chateamos e aborrecemos, temos bloqueios criativos e crises existenciais, não trabalhássemos juntos há tanto tempo! Mas passamos por tudo isto no processo de construir o nosso próprio percurso, de descobrir e evoluir, de procurar o apelo original que nos trouxe para esta profissão, a paixão por algo elusivo que sempre aparece num qualquer projeto em que estamos empenhados. Fazemos mesmo o que gostamos de fazer, mesmo que às vezes o fazer seja ir à descoberta daquilo que gostamos.
10/15Não queremos abrilhantar a precariedade nem fazer de conta que tudo corre como gostaríamos que corresse, mas dentro do caminho estreito que é posto à frente dos jovens designers, queremos trabalhar com gosto e ajudar aqueles que chegam até nós. Temos descoberto, através da prática, que estes pequenos trabalhos e estes pequenos gestos do projeto começam a constituir um certo tipo de abordagem que nos caracteriza. Não é uma identidade nem um estilo, é algo mais processual e filosófico. É algo que nós próprios estamos a descobrir e que nos faz pensar sobre o futuro.
11/15Com a pandemia, a nossa atividade viu uma brusca redução e tivemos mais tempo para refletir (tempo que não queríamos mas, como toda a gente, tivemos de aceitar). Percebemos que na faculdade aprendemos apenas algumas das muitas maneiras corretas de fazer as coisas, o que já é um abuso de linguagem, pois talvez nem se possa falar de correto e errado nestes termos. Depois da licenciatura, afastámo-nos um pouco do mundo e das instituições do design. A nossa turma fragmentou-se, não fez parte de nenhuma “cena” nem resultou em qualquer forma de comunidade coesa de designers. Não fomos os putos fixes da nossa geração, não somos presenças assíduas em inaugurações ou simpósios, não tentamos estar na crista de qualquer onda e as nossas afinidades profissionais, teóricas, artísticas e culturais andam um pouco por todo lado. Este afastamento livrou-nos, em parte, do cansativo discurso dominante do design contemporâneo, que é na maior parte uma disputa entre a lengalenga do universalismo visual de raiz ocidental e o espírito empreendedor do neoliberalismo, tantas vezes empacotado como ação socialmente consciente ou outra treta qualquer.
12/15Pudemos constituir a nossa prática em relação ao nosso próprio universo de experiências e referências e ficámos cada vez mais comprometidos com a noção abrangente de comunicação do que com o design, tantas vezes um espaço pedante e fechado sobre si mesmo. No fundo, pouco nos interessa o que é o design ou estas discussões eternas sobre modas e modinhas, sobre se isto e aquilo é arte ou design ou sabe-se lá o quê. Interessa-nos o desafio de comunicar visualmente num mundo cada vez mais feito de imagens e num tempo politicamente desafiante, em que as relações humanas com a natureza, a tecnologia e a própria humanidade estão a ser redefinidas, nem sempre no melhor sentido. Aqui, acreditamos que os designers de comunicação como nós têm um papel a desempenhar e devem olhar para a totalidade da cultura visual, procurando conhecê-la e perceber como agir dentro dela. Não porque somos designers, mas porque temos as ferramentas. Ferramentas que usamos para nos sustentar, num processo que influencia sempre a vida dos outros, mesmo quando eles não o pediram. Por isso temos uma grande responsabilidade.
13/15O nosso percurso de experimentação e descoberta até este ponto foi trilhado sem grandes planos, feito de improvisos e de acasos, aceitando as situações inesperadas em que o nosso trabalho é convocado. Neste processo fomos percebendo que há espaço para fazer as coisas à nossa maneira, desde que estejamos sempre comprometidos com o projeto, com o cliente e com as nossas próprias ideias sobre o mundo. Identificamo-nos com aqueles designers que tiveram de conquistar o seu espaço único, não por vaidade autoral, mas por acreditarem que há muitas maneiras de fazer, muitas maneiras de imaginar, muitas maneiras de projetar.
14/15Acreditamos que o nosso trabalho beneficia desse otimismo que é uma forma de esperança, mesmo perante as mais difíceis circunstâncias do nosso tempo. Não é remédio, nem é feitiço, e muito fica por dizer sobre as grandes questões do design. Esta carta não é sobre isso. Fazemos este relato da nossa experiência não por acharmos que ela é excecional ou que é um exemplo para alguém. O que pretendemos é incentivar outros jovens designers a repensar as fórmulas, a perceberem que podem apontar a algo mais do que a validação por parte dos gatekeepers que ninguém escolheu. Queremos incentivá-los a libertarem-se dos preconceitos e dogmas da “comunidade” do design e a criarem as suas próprias relações, quadros de referências e filosofias de trabalho. A colaborar com amigos, a desafiar desconhecidos, a construir coisas parvas que alegram o mundo e a fazer tudo isto com seriedade, sem levar isto tudo muito a sério. Tudo está a mudar à nossa volta, as cartas estão a ser baralhadas. Temos a oportunidade de construir nas fendas o que o solo estável nunca aguentou.
Lisboa, Janeiro de 2022
Guilherme Sousa e Laura Araújo