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Querida Lisa

Lisa H. Moura

Querida Lisa

Lisa H. Moura 1/13

Querida Lisa,

Deixar-me-ei de formalidades e não te perguntarei como estás, pois recordo-me bem do que sentias nesse final de tarde de domingo em São Paulo, em 2014. Regressada a casa após mais um dia inteiro de trabalho de montagem de uma exposição que te tem consumido há meses (anos, na verdade), recordo-me de te ter prometido que alguma coisa faria para te tirar desse estado de fadiga extrema em que te encontras.

Sei que há já algum tempo que sentes que o ritmo acelerado da grande metrópole e o não menos intenso ritmo no escritório moem o teu bem-estar físico e mental. Já nem a tua playlist preferida — à qual podias ter dado um nome mais original que apenas “Brasil” — com o Tim Maia, Elis, Jorge Ben Jor… te anima ou reaviva como dantes nas noites que se prolongam cada mês enquanto paginas a revista S. para que esta entre em gráfica no dia seguinte. E aquele pão de queijo no boteco da esquina ao final de um dia a paginar o livro da Marina A. também já não surte o mesmo efeito.

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Virás a descobrir muito em breve que cumpri essa promessa de mudança: daqui a poucas semanas falarás com os teus chefes e avisarás que, terminado o contrato, não ficarás mais em São Paulo e mudar-te-ás para a Suíça, para tirar um mestrado.

Poderia dizer-te que vais escolher esse mestrado porque tem um programa curricular fantástico e professores espectaculares, mas a verdade é que, neste momento, agrada-te a ideia de viver numa cidade pequena, no meio das montanhas, com águas límpidas e ar puro e fresco. Já não precisarás de pôr a tocar gravações de água a cair na folhagem para te ajudar a adormecer neste período de calor, poluição e seca extremas na cidade…

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Darás por ti em poucos meses a descer a “Prairie”, passando pelo supermercado ‘tuga que, fiel ao seu estereótipo, anuncia as promoções de bacalhau e outras tantas délicatessen da terra, para entrar naquele que será o teu porto seguro durante os próximos dois anos: a oficina de madeiras da tua faculdade. Leste bem: oficina de madeiras! Descobrirás a tua paixão pelo trabalho desta matéria-prima e arrepender-te-ás de não o ter feito mais cedo, quando ainda estudavas nas Belas-Artes em Lisboa e vislumbravas o pessoal de escultura e equipamento a transportar madeira para as catacumbas.

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O mestrado vai ajudar-te da melhor e pior maneiras possíveis: vai colocar-te à prova fazendo-te sair da tua zona de conforto do design gráfico 2D, obrigando-te a explorar outras formas de expressão plástica e visual, outras materialidades e até outras formas de encarar a profissão de designer, mas vai também expor-te às influências tóxicas de professores movidos pelo interesse próprio e por um qualquer sadismo em manipular desejos de mentes jovens e susceptíveis para alcançar os seus objectivos pessoais, sob o véu de “mentoria”.

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Entre aulas e noites de babysitting para pagar os estudos, ver-te-ás rodeada de amigos com ambições não muito diferentes das tuas, mas com experiências muito diversas, que te arrastarão para as suas festas vendo-te perdida na tua insegurança e na tua síndrome de impostor, muito alimentada, infelizmente, por professores que a certa altura admitirão “querer quebrar-te”. (Esta frase ainda hoje ressoa na minha cabeça, passados quase 5 anos: “I’m going to break you”)…

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No meio deste redemoinho de boas e más experiências, descobrirás o poder terapêutico do humor no teu trabalho. Nas tuas longas sessões nocturnas a ver Futurama enquanto estudas, terás uma ideia que vai mudar a tua vida. Melhor! Desenvolverás um projecto que vai mudar a forma como encaras a tua existência: a Alien Magazine.

Nesses teus quase 27 anos de vida terás finalmente uma resposta para a questão que te assombrou toda a vida: “De onde és?”. Dirás ser orgulhosamente Alien.

7/13

Não terás mais de desculpar-te por não gostares de azeitonas, apesar de seres portuguesa, ou por não gostares de cerveja, apesar de seres alemã. Já não te sentirás incomodada quando te falarem em Inglês no café da esquina, porque afinal “não parece nada ser portuguesa”, e deixarás de sentir o desconforto de falar no teu alemão quebrado quando te pedem para comprovar que és mesmo alemã. Não temerás mais que te digam novamente “volta para a tua terra”, quando te encontras no local onde nasceste. Outros partilharão contigo a sua experiência Alien e encontrarás finalmente o sentimento de pertença que te havia faltado toda a vida.

8/13

Mas hoje, neste preciso momento em que te escrevo, não é este sentimento de conquista pessoal que me leva a escrever-te esta carta. Neste teu futuro não muito distante, darás por ti numa situação não muito diferente desse teu fim de tarde de domingo de 2014.

Darás por ti exausta, mais uma vez, após semanas, meses (anos, até) de intenso trabalho. Alegrar-te-á, porventura, saber que te encontras de volta a Portugal a trabalhar naquilo que sonhaste enquanto jovem estudante de design. És designer num museu.

9/13

Há dois anos que moldar a forma como o museu comunica e interage com o público é o teu desafio diário e, no entanto, este cansaço tolda novamente os teus sentimentos. Dás por ti — dou por mim — num final de domingo passado a trabalhar para cumprir desejos que não são os teus, a ultrapassar obstáculos criados por vontades que te são alheias e a lutar contra uma inércia institucional que não dá sinais de mudança.

10/13

Apercebes-te de que o trabalho que gostas de fazer (criar, conceptualizar, pesquisar, desenvolver em conjunto…) é já quase um trabalho paralelo ao teu day job. As tuas horas de sol são canalizadas para este ecrã a responder a emails e a responder a idiossincrasias várias, com as quais não raras vezes discordas. Dás por ti a passar o trabalho de que gostas para a noite dentro, porque dedicas o teu dia a atender aos laivos de outros. O teu pensamento oscila entre a flagelação por te sentires assim, já que este seria o teu trabalho de sonho, e as velhas máximas do “Quem corre por gosto, não cansa” ou “Quem faz o que gosta nunca trabalhará um dia na vida”.

Vês os teus amigos a fazer escolhas nas suas próprias vidas profissionais que não são as tuas — mais dinheiro para fazer algo de que não gostam ou menos dinheiro para ter mais dias de férias — e pesas na balança aquelas que são as tuas responsabilidades com aquelas que imaginas serem as tuas vontades.

11/13

Neste exato momento, confesso desejar que me desça dos céus uma qualquer carta como esta que agora te escrevo, escrita pelo nosso eu futuro, a dar conta dos anos que me/nos esperam.

Diverte-me pensar neste sonho.

Qual gif animado, consigo visualizar o momento em que desce à Terra uma carta envolta em fumo rosa e que, ao abrir, deixa cair glitters dourados que se refletem na minha cara a la Travolta no Pulp Fiction, com todas as respostas a estas minhas ânsias.

12/13

Espero alguns instantes, mas nem sinal dela.

Resta-me portanto esperar que estes pensamentos e estas experiências passadas mais uma vez me impulsionem a agir e não tanto a reagir, e que este cansaço se transforme em optimismo e se traduza em outras tantas experiências nesta vida de designer.

Um abraço forte,
Lisa

Lisboa, Março de 2022

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