Queridos colegas
Sofia Rocha e SilvaQueridos colegas,
Dizem que chegar aos 30 tem efeito retrospectivo, por isso lembrei-me de vocês.
Onde estão? Como estão? Tenho pensado em vocês. Não sei se é da idade ou se é por me ter interessado mais sobre o tema do trabalho e das condições de trabalho. Está tudo tão diferente! Quando entrámos na universidade tínhamos a ingenuidade de não ter redes sociais, e no secundário, a maioria de nós não sabia bem o que significa ser designer. Aprendemos depois.
Ainda se lembram do princípio? Era 2008; as inscrições na faculdade eram obrigatoriamente presenciais — e lentas! As Belas-Artes tinham duas funcionárias na secretaria para os mais de 150 novos alunos. Demorou um dia inteiro. Acho que alguns de vocês até ficaram para o dia seguinte. A fila ainda estava enorme quando a secretaria fechou para almoço. Só me consegui inscrever às quatro da tarde. Cruzei-me com alguns de vocês nesse dia, mas há algo de abstracto em acumular caras na memória visual, sem nomes, sem histórias por trás.
2/17Um mês depois começávamos a falar de crise.
Quando começamos a estudar para ser designers em 2008, achamos que vamos ser designers em 2008. Não temos uma percepção correcta do tempo ou da possível evolução da profissão. O mundo era um lugar diferente nessa altura. Comprei o meu primeiro computador portátil, era um MacBook branco. O almoço na cantina custava € 2,15. Em 2008 vivíamos num Porto diferente; o Porto de Rui Rio e das paredes brancas; o Porto sem ponto; o Porto onde a Rua da Santa Catarina era perigosa depois do pôr-do-sol; o Porto sem estúdios pequenos, sem Matosinhos Cidade do Design, sem designers mulheres visíveis. Em 2008, o design ainda era o das agências, o dos grandes clientes. Parecia inalcansável. Passei os primeiros anos a tentar descobrir o que era ser designer e como é que eu me encaixava nesse significado. Algum de vocês sabia? Chegaram a saber, até hoje?
3/17Li que quando uma geração se torna adulta em tempos de crise, isso afecta a sua percepção do que lhe é possível. Não estou a dizer que não temos culpa de não saber o que queríamos como designers, mas arrisco que essa recordação constante de que devíamos sujeitar-nos ao que aparecia, ao que havia, não era muito animadora. O que faz isso por nós, como profissionais? Em que é que passamos a acreditar em relação ao trabalho?
No segundo ano, reformularam o curso todo. Uma aluna mais velha protestou e alguém respondeu que não se preocupasse, que teria sempre emprego porque não era nenhuma “tonicha”. Tivemos um professor que nos disse que éramos a sua futura competição e por isso não tinha interesse em partilhar tudo o que sabia. O Paulo desenhou vinil para os espelhos da faculdade que punha bonés do McDonald’s sobre o nosso reflexo. Tivemos um professor que nos disse que não nos preocupássemos com a crise, que quando saíssemos do curso ia haver muito trabalho para designers, que a profissão estava em crescimento e que bons designers teriam sempre emprego.
4/17Parece animador, mas conto pelos dedos os que de nós se sentiam bons designers. Vocês sentiam-se bons designers no segundo ano?
Houve um momento, algures mais tarde, em que começámos a ponderar a hipótese de criarmos o nosso próprio trabalho. Será que nunca nos tinha ocorrido que um designer não era obrigatoriamente funcionário? Começámos a ter aulas de crítica do design com o Mário Moura ao mesmo tempo que o Miguel Gonçalves explicava aos portugueses que tinham era de bater punho e manchava a palavra empreendedorismo para nós, para sempre. É um cocktail de ideias, não é?
5/17Por mais que seja cliché, Erasmus mudou tudo para mim, em duas fases: primeiro, no terceiro ano quase todos vocês escolheram fazer Erasmus. A turma ficou reduzida a metade e isso fez com que, de repente, todos tivéssemos mais espaço — para pensar, para falar, para experimentar. Vocês voltaram pessoas novas, cheias de ideias e planos. Depois, no quarto ano foi a nossa vez e, naturalmente, o ritmo de estar noutro país, a conhecer pessoas novas todos os dias, a tentar aprender uma língua diferente, foi um banho de perspectiva. Voltámos pessoas novas, cheias de ideias e planos.
6/17Estávamos a começar 2012. Faltavam só uns meses e seríamos designers a sério. Bem, que bom. Íamos para onde? Fazer o quê? Muitos de vocês falavam em emigrar [e emigraram], mas eu não queria… Gosto de viajar mas já tinha percebido que ia ser uma emigrante de coração apertado, ia chorar de cada vez que visse bacalhau no supermercado. Não consigo evitar. Gosto tanto de estar aqui! Mas não me sentia nada pronta para enfrentar o mercado de trabalho — o cenário que pintavam era tão negro, o desemprego era tão alto, as notícias nada animadoras.
7/17No último semestre tivemos Gestão em Design. Não sei se algum de vocês estava com expectativas, mas eu estava. Achei mesmo que ia ser útil, que, pelo menos, íamos aprender a fazer orçamentos. O professor Carneiro fez os possíveis, aprendemos diagramas de Gantt para organizar as etapas de projetos, falámos sobre orçamentos, sim, e ele convidou vários estúdios a virem falar sobre como geriam o trabalho. Infelizmente, como já vos lembrei, era 2012, e salvo uma excepção, nenhum desses estúdios teve vontade de abrir o jogo e falar de dinheiro — ou sequer sobre a forma como o geriam, sem valores. A excepção talvez tenha sido pior. Lembram-se? Falaram-nos que cobravam € 8 por hora para pagar todas as contas do estúdio e a si mesmos. O que acharam desse valor? Não me lembro de termos discutido o assunto, mas arrisco dizer que nenhum de nós achou assim tão baixo; multiplicámos, provavelmente, pelas 8 horas de trabalho diárias que conhecíamos, e € 320 pareceu-nos dinheiro a sério. Agarrámo-nos aos € 8/hora como uma bóia concreta num oceano vazio de referências sobre preços em design.
8/17Aprendemos alguma coisa sobre como viver do nosso trabalho? E, se não for como independentes, aprendemos alguma coisa sobre negociar salários, o que é salário bruto ou líquido, e o que ter em atenção num contrato de trabalho? Em parte, esta frustração acompanhou-me até hoje e acredito que seja por isso que me dedico a estes temas. Estive a trabalhar num inquérito, sabem? São 729 respostas sobre quanto ganham, de onde são e como trabalham designers e outros profissionais criativos em Portugal. Envio-vos algumas notas em anexo, adorava saber a vossa opinião sobre os resultados.
10/17Não culpo os professores. Parece-me que essa parte mais pragmática do trabalho é uma realidade longe da academia; muitos deles não trabalhavam como designers e, se o faziam, ter um emprego principal, como professor universitário, tem obviamente o seu peso na gestão.
Se calhar vocês não pensam sobre estas coisas. É como vos digo, se calhar é da idade. Sobretudo tenho pensado nessa fase final do curso. Não me sentia pronta. Sei que não era o vosso caso, porque vos via a fazer planos para sair do país, ou para continuar projetos pessoais que já tinham começado. Eu não fazia ideia. Estava paralisada. Por isso, quando me disseram que havia créditos teóricos que não tinha feito em Erasmus e estavam a faltar, em vez de tentar resolver burocraticamente — que seria, sem dúvida, possível — decidi, no momento, que ia ficar mais um ano a fazer duas disciplinas.
11/17Pareceu-me o salvamento possível: a única forma de adiar a decisão.
Vocês saíram todos, eu fiquei. Agora é a parte desta carta em que vos largo, mas fiquem para ler o resto.
12/17Talvez me passasse a sentir mais designer, menos aluna? Não vos sei explicar o quão incapaz me sentia para começar fosse o que fosse, profissionalmente. Sobretudo se estivéssemos a falar sobre trabalhar em estúdios. Não sei de onde vinha isso, até tinha boas notas, mas era tão pouco confiante no meu trabalho e na minha capacidade de praticar design, que estava desesperadamente à procura de encontrar essa luz. Talvez um ano extra, sem vocês à minha volta me pudesse ajudar. Sentia-me pequena, sabem? Minúscula.
Além disso, sei que há um ponto da curva de aprendizagem em design em que nos sentimos inúteis e decorativos; como se estivéssemos só a aprender a ajudar outras pessoas a vender mais e mais e mais. Para quê? Falei sobre isto com alguns de vocês durante o curso.
13/17Depois, estávamos em 2013. Sozinha nas Belas-Artes, conheci pessoas novas e organizámos o Encontro Nacional de Estudantes de Design. Percebi que tratar de logística, finanças, recursos humanos, era muito mais fácil para mim do que fazer design. Se calhar estava no curso errado. Por ter mais tempo livre, comecei a passar mais tempo em Vila Real e conheci pessoas que, de repente, achavam o meu trabalho muito bom e viam utilidade em trabalharmos juntos. Na minha ausência, o Porto começou a mudar; era o entusiasmo do início do Rui Moreira, do turismo que começava a borbulhar dos micro e dos mini estúdios que eram produto da falta de emprego e da promoção dos negócios próprios; eram os tempos do Milhões de Festa, das bandas de Barcelos e dos enxames de pequenos movimentos independentes. Entusiasmo era a palavra certa.
14/17Depois de acabar o curso, em 2013, voltei para Vila Real um ano. Em parte, ainda estava a tentar adiar a decisão do que fazer profissionalmente e a debater-me com a insegurança. Não me conseguia imaginar a trabalhar num estúdio, sabem? Era tão intimidante. Parece ridículo pensar nisto agora. Ironicamente, foi isso que me empurrou pelo caminho mais difícil: ficar em Vila Real, construir o meu próprio trabalho e, finalmente, a volta completa — comunicar-me como designer a trabalhar por conta própria, onde quero e como quero.
Para alguns de vocês pode parecer esquisito e até acharem que é uma solução de último recurso — daquelas de quem não conseguiu nada melhor — mas sabem… Hoje pode-se ser designer em qualquer lugar, mas subestimamos a importância dos lugares a longo prazo. Eu precisava de um lugar onde me sentisse útil.
16/17Escrevam-me em breve, gostava de saber onde estão, como estão e se costumam lembrar-se dos tempos da universidade. Como é que se sentem marcados por eles, dentro das fronteiras da faculdade e na época em que aprendemos a ser designers?
Seja como for, espero que estejam bem e tenham encontrado o vosso lugar.
Até breve, beijinhos
Sofia
Vila Real, 28 fevereiro 2022
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